Olá! Abrimos este espaço para autores convidados. Não iremos interferir na liberdade de expressão dos mesmos. Portanto, esperamos que os autores fiquem à vontade para expor suas ideias sobre educação, mesmo se estas não representarem a nossa opinião.
Muito obrigada!
Solange Moll Passos
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INTERDIÇÃO PROGRESSIVA DO CORPO DE JOÃOZINHO[1]
Irene Debarba
Joãozinho é um menino alegre e ativo. Desde muito pequeno evidenciou sinais de esperteza, inteligência e vivacidade.
Atualmente, com cinco anos, aproveita seu tempo ao máximo e no término de cada dia, lamenta por ter que ir para a cama.
Ele joga futebol com os meninos da rua, no campinho próximo a sua casa. Também empina pipa, brinca com seus carrinhos (transformando o quintal de sua casa em cenários diversificados). Adora subir nas árvores, pendurar-se em seus galhos, inventar brinquedos com pedaços de pau, latas, barbante, tampinhas, etc.
Dificilmente vê-se Joãozinho dentro de casa. Quando está em frente à TV, raramente observa-se Joãozinho parado. Simultaneamente, presta atenção aos programas e brinca de pular corda, realiza gestos imitativos aos vistos nos desenhos, repete palavras ou frases pronunciadas por seus heróis, enfim, movimenta-se e até, de certa forma, interage com os programas assistidos.
Joãozinho está prestes a iniciar uma nova etapa de sua vida. Em breve, completará seis anos e ingressará no primeiro ano do ensino fundamental. Ele acalenta inúmeras expectativas com relação à escola. Seus pais lhe disseram que ela lhe viabilizará um futuro melhor. Melhor que o deles, que a frequentaram muito pouco, por falta de oportunidade. Joãozinho não faz ideia de como o futuro possa ser ainda melhor. Ele já é tão feliz! Mesmo assim, fica pensando em como será bom aprender coisas diferentes, como será maravilhoso poder ler tudo que está escrito nas placas do seu bairro, nos anúncios da TV, nos seus poucos brinquedos comprados. Saber ler o que está escrito no único livro existente em sua casa: a Bíblia.
Bem, o tempo passou e Joãozinho está impecável. Sua mãe trabalhou muito como diarista e seu pai na função de pedreiro, para poderem comprar tudo o que foi solicitado na lista de material. Seu uniforme está completo. O que mais incomoda Joãozinho são seus tênis. Estava acostumado a andar descalço. Mas está feliz… envaidecido. Achou-se tão bonito ao observar-se no espelho.
Seus pais, orgulhosos, o levam à escola. Joãozinho não a imaginava tão grande. Logo lhe chamam a atenção o campo de futebol e o parquinho.
– Nossa! – pensa ele. – Quanto espaço para brincar com o Paulo (amigo que também está ingressando na escola).
Joãozinho ainda não conhecia as regras da escola. Era proibido correr. Somente poderia fazê-lo durante as aulas de educação física, quando a professora autorizasse.
O sinal bate e Joãozinho entra na sala (na qual irá permanecer quatro horas de seu precioso dia). A professora menciona que no primeiro dia podem sentar-se onde preferirem. Joãozinho olha ao seu redor e vê tantas crianças. Pensa:
– Puxa, vai ser divertido brincar com essa molecada!
A professora interrompe seus pensamentos informando aos alunos que aprenderão muita coisa importante. O ABC, os números, escrever, fazer continhas, etc.
Era tudo o que Joãozinho queria… aprender! Tinha sede de aprender. Já sabia muito sobre a profissão de seu pai, observando-o quando o acompanhava ao serviço. Também conhecia os afazeres da mãe e desempenhava com responsabilidade sua quota de tarefas. Não era de dar trabalho, exceto, pelas muitas vezes que chegou em casa com arranhões, “galos”, hematomas, enfim, uma série de machucados resultantes de suas peraltices.
Após uma breve conversa, em que a professora explica o que irão estudar durante aquele ano, todas as crianças apresentam-se, dizendo seus nomes e idades. Posteriormente, ela solicita que peguem o caderno de atividades. Joãozinho nunca tinha escrito num caderno pautado. Ele já havia rabiscado em pedras, tábuas, jornais, papéis velhos…
A professora desenha no quadro a letra “A” e informa que aprenderão as vogais, iniciando pela vogal “A”. Mostra o movimento correto para traçá-la e pede-lhes que a façam no caderno. Joãozinho tenta, conseguindo fazer algo semelhante. Ocupa várias linhas.
Enquanto isso, a professora passa de carteira em carteira para verificar se as crianças conseguiram. Ao chegar na carteira de Joãozinho, diz-lhe:
– Joãozinho! A letra não pode passar fora da linha! Apague e tente novamente.
Meio decepcionado, atendeu ao pedido da professora, realizando inúmeras tentativas, sem sucesso. Acaba rasgando a folha de tanto apagar. Finalmente, para pôr fim ao seu tormento, bate o sinal, anunciando a hora do recreio.
– Oba! – verbaliza ele.
Corre para o pátio e come seu lanche rapidamente em companhia de seu amigo Paulo. Enquanto lancham, também discutem qual das brincadeiras realizarão primeiro. Resolvem ir ao parque. Quando lá chegam, percebem que está vazio e trancado. Dirigem-se velozmente ao campo de futebol. Este está repleto de crianças, mas nem sinal de bola. Informam-se com colegas e descobrem que é proibido jogar futebol na hora do recreio. Só lhes resta a opção do pega-pega. Assim, aproveitam os últimos minutos.
Retornando à sala, a professora pede-lhes que façam uma fila em frente à porta. Passando de um a um, para ao lado de Joãozinho, dizendo-lhe:
– Joãozinho, o que é isso! Todo suado e sujo! Ah! Já sei, você correu. Você não sabe que é proibido correr durante o recreio? Claro! A culpa é minha que não lhes ensinei as regras da escola. Vamos entrar na sala, fechar os cadernos e durante o resto desta manhã, vou lhes ensinar todas as regras desta escola. E prestem muita atenção, pois quem for pego correndo ficará sentado durante o recreio no dia seguinte. Certo?
E assim foi. O restante da manhã os alunos permaneceram sentados e a professora registrou em papel pardo uma série de normas a serem cumpridas. Tudo o que não podia ser feito ficou em evidência.
Joãozinho vai para casa entristecido… decepcionado. Os pais o aguardam ansiosos para saber como foi o primeiro dia na escola. Ao ser indagado, Joãozinho não sabe o que responder. Então fala:
– Foi mais ou menos – dirigindo-se ao seu quarto.
Os pais de Joãozinho estranham sua atitude. Depois de conversarem melhor com ele, concluem que irá se acostumar com a nova rotina. Até então, só havia brincado. Agora, “tinha que dar duro” para vencer na vida. Disseram-lhe que a vida não é fácil e que precisaria se esforçar mais e parar de pensar só em brincadeira. Também lhe afirmaram que daquela data em diante, tudo seria diferente. Uma nova etapa de sua vida havia começado: a de estudante!
Joãozinho é um menino obediente e valoriza a opinião dos pais. Conclui que eles devem estar certos.
Os dias que se seguem na escola não são muito diferentes do primeiro. No tempo em que os alunos permanecem na sala ficam, a maior parte, sentados. Escrevem muito, geralmente copiando os exercícios e resolvendo-os. Também desenham, recortam e pintam. Algumas vezes, a professora propõe trabalhos grupais; em outras, atividades corporais, jogos, brincadeiras, com o objetivo de “entreter” as crianças. No entanto, estes momentos lúdico-corporais são geralmente adotados em “datas especiais” às crianças; tais como: festa junina, dia do estudante, dia da criança. A professora justifica a pouca frequência deste tipo de atividade em decorrência do excesso de conteúdos a serem trabalhados durante o ano letivo. Também acredita que atividades corpóreas sejam pertinentes a área específica de educação física.
Joãozinho aprendeu a escrever dentro da linha, todavia, apresenta dificuldade para identificar as letras do alfabeto ensinadas. Comenta com os colegas que quando a professora permite fazer as tarefas em grupo ou quando proporciona ações pedagógicas pouco mais dinâmicas, parece-lhe tudo mais fácil de aprender. Lamenta que ela lance mão de recursos lúdicos somente no término das aulas, enquanto aguardam pelo sinal. Durante o tempo que permanece sentado, seu corpo reclama por movimentos. Gostaria de poder andar, se espichar, correr… A professora percebe sua inquietação e pergunta-lhe, às vezes:
– Tem formiga na cadeira Joãozinho? Vê se fica parado! Assim você não consegue fazer nada direito, muito menos aprender o alfabeto. Você tem que prestar mais atenção, Joãozinho! É para o seu bem.
Joãozinho respeita enormemente seus professores e tenta, sem muito êxito, ficar mais parado, concentrado. Já consegue desenhar as letras bem redondinhas, como as da professora. O que não consegue é gravar seus nomes, juntar as letras, formar as sílabas… Em casa os pais tentam ajudá-lo, fazendo-o escrever o alfabeto inúmeras vezes. Eles se questionam por que Joãozinho “tem cabeça boa” para aprender tanta coisa e na escola não vai bem. A professora lança mão de tudo o que sabe para ajudar Joãozinho. Chega a pensar que ele não aprende porque é um menino hiperativo. Encaminha-o para avaliação médica. O diagnóstico indicou que Joãozinho não tem nada. A mãe considera a possibilidade de que Joãozinho esteja com vermes. Ouviu falar que criança com vermes fica agitada. Ministra-lhe uma dose do remédio, sem atingir o resultado almejado.
Joãozinho também tem muitas dúvidas. Depois de várias explicações, até entendeu porque não pode durante o recreio correr, jogar futebol ou ir ao parque. Percebeu que o espaço que inicialmente considerou tão grande é limitado para tanta criança, fazendo-se necessárias algumas regras que garantam o bem estar dos alunos e o bom funcionamento da escola. O que ele não entende, por mais que se esforce, é por que a maior parte do seu corpo é proibida na sala de aula. Ele pode utilizar suas mãos para copiar, resolver as atividades, recortar, pintar e desenhar o que a professora sugere. Ele pode utilizar os ouvidos para escutar as orientações e explicações da professora e alguns questionamentos dos colegas. Ele pode usar os olhos para observar o quadro, o caderno, os cartazes e os livros. Ele pode valer-se de sua capacidade de falar para responder à chamada e às interrogações da professora, cantar, fazer perguntas. Às vezes, pode verbalizar suas experiências sem demorar-se. Há muitas coisas importantes a serem feitas.
– E o resto do corpo? – se questiona Joãozinho. – O que faço com ele? Como posso aquietá-lo? Como posso parar algo que nunca ficou inerte, passivo?
Joãozinho não entende, mas continua se esforçando, pois acredita que deve haver uma explicação lógica para aquele procedimento.
Assim, dois anos se passaram e, como diz o velho ditado: “Não há nada que o tempo não possa curar”. Neste caso, parar. Joãozinho aprendeu a dominar seu corpo, aprendeu a reprimir seus desejos, aprendeu a assumir uma posição passiva e receptiva na sala de aula. E, além do fator tempo, com muita insistência, no segundo ano conseguiu alfabetizar-se.
Joãozinho venceu! Joãozinho é um vencedor! Ultrapassou todos os obstáculos encontrados no caminho da alfabetização.
A escola venceu! A escola é vencedora! Conseguiu, gradativamente, interditar o corpo de Joãozinho.
[1] Primeira versão desta narrativa foi elaborada e apresentada na Dissertação de Mestrado da autora no ano de 2003.
A autora é Graduada em Pedagogia; Especialista em Psicopedagogia, Gestão Escolar, Neuropsicopedagogia e Desenvolvimento Humano; Mestre em Educação.
4 Comentários
Infelizmente esta é a realidade educacional do planeta, e como diz Ken Robinson ´´à medida que as crianças crescem, nós começamos a educá-las progressivamente da cintura para cima. E depois nos focamos na cabeça.“ Certamente corrompemos a criatividade, inteligência, emoções e negligenciamos a possibilidade de se construir um ser humano autônomo e livre. Consequentemente ajustamos este individuo as engrenagens do mundo para que diante do padrão estabelecido não se torne ameaça para o sistema e assim, finalmente o golpeamos para saborear a vida.
É inadmissível na realidade em que vivemos, de avanços tecnológicos e bombardeio de conhecimentos que se permita ainda o latrocínio da humanidade. É preciso que exista mudança de mentalidade, iniciando pela cabeça e terminando nos pés, para que possamos caminhar juntos pelo único ideal humano: amenizar dúvidas e incertezas através da felicidade como ser integral.
Certamente, Irene você é uma dessas pessoas colaboradoras, adorei o artigo.
Aline, encaminhei o seu comentário para a Irene.
Obrigada por seu comentário cheio de reflexões.
Volte sempre!
Meu Deus… Eu tenho que fazer alguma coisa… Aliás Solange algumas coisas começam a se esboçar aqui no ateliê, e você sabe que a casa é sua, assim que começarem as atividades eu lhe comunico.
Beijão grandão, obrigada por tudo!
Rita, estou curiosa!
Bjos
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